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Só uma coisa me entristece em ser Juiz de Direito
Na verdade, o título deste comentário deveria
ser assim: só uma coisa me entristece em ser Juiz de Direito por
muito tempo na mesma comarca.
O fato de ser Juiz de Direito, aliás, já me
deu e continua dando muitas alegrias. Não tenho do que reclamar. Sou feliz em
ser Juiz de Direito e tenho muito orgulho disso. Mesmo nos momentos de crise,
em que a magistratura está sendo alvo das mais duras críticas, não tenho receio
algum de dizer, onde quer que me encontre, que sou Juiz de Direito.
Ingressei na magistratura da Bahia em 06 de
dezembro de 1990. Há mais de 20 anos, portanto. Minha primeira comarca foi
Urandi (região sudoeste da Bahia) e já atuei, seja como titular ou substituto,
nas comarcas de João Dourado, Lapão, América Dourada, Ibirataia, Ipiaú,
Retirolândia, São Domingos e Valente. Em todas, deixei bons amigos e os
servidores que trabalharam comigo continuam com a minha garantia, sendo
desafiados, de colocarem a “mão no fogo” em meu favor sem se
queimar. De outro lado, como sempre disse a todos, também quero sempre a
reciprocidade, ou seja, quero apostar e colocar a “mão no fogo” por
vocês e não me queimar. Esta é a nossa cumplicidade.
Desses mais de 20 anos de magistratura, mais
de 13 anos foram na atual comarca, Conceição do Coité. Isto por opção minha.
Pelo tempo que tenho de magistratura, se quisesse, já estaria em Salvador há muito
tempo. Na verdade, da minha turma, quem ainda está em comarcas do interior,
como eu, foi por opção mesmo. Esta minha opção foi se formando ao longo do
tempo e influenciada por vários fatores: qualidade de vida no interior, melhor
lugar para criar os filhos, possibilidade de relacionamento mais caloroso com
as pessoas, participação na vida da comunidade... Enfim, para ser juiz do jeito
que quero ser, o melhor lugar é em uma comarca do interior.
Evidente que não tenho nada, absolutamente,
contra os colegas que fizeram carreira rápida e já estão em Salvador à beira de
se tornarem desembargadores do Tribunal. Como disse, é questão de opção e
projeto de vida. Alguns colegas, por exemplo, ao ingressarem na magistratura,
deixaram família em Salvador e assumiram comarcas no interior. Lógico,
portanto, que privilegiassem as promoções e o retorno para perto da família.
O fato de ser Juiz por tanto tempo em uma
comarca, apesar de me entristecer em alguns aspectos, não me causa outros tipos
de problemas. Sei conviver com todos, respeitando as diferenças e me colocando
sempre na posição de Magistrado. Na verdade, viver tanto tempo e sendo Juiz da
mesma comarca me faz bem e existem alguns aspectos que aliviam minha tristeza.
Conheço cada bairro da cidade e suas deficiências, conheço todo o interior do
município e também as dificuldades enfrentadas pelo povo pobre da zona rural.
Já participei de quase todas as novenas das comunidades católicas, reuniões de
associações e outros eventos culturais na zona rural do município. Isto tudo me
permite julgar com muito mais conhecimento e tranquilidade. Na minha
hermenêutica, portanto, compreender a realidade me permite aplicar o Direito
como muito mais proximidade da Justiça.
Voltando ao começo, o que me entristece em ser
Juiz de Direito por muito tempo na mesma Comarca?
Vamos lá.
Quando aqui cheguei, em julho de 1997,
organizei o quadro dos“Comissários Voluntários”, que hoje são
designados pela nova Lei de Organização Judiciária da Bahia como “Agentes
de Proteção.” Pois bem, naquela época, os Comissários me apresentavam
crianças que encontravam nas ruas e praças altas horas da noite ou praticando
pequenas infrações. Os pais eram chamados para receberem seus filhos e, de
outras vezes, dependendo da gravidade do ato infracional e quando se tratava de
adolescente, o representante do Ministério Público oferecia uma Representação e
se instaurava um procedimento para apurar o caso.
O tempo foi passando e as crianças foram se
tornando adolescentes e depois adultos. Muitos conseguiram estudar, mesmo sem
muito apoio da família, poder público ou comunidade. Hoje, conheço alguns deles
trabalhando, casados e “tocando” a vida. Outro dia, apareceu
um desses meninos no fórum e nos divertimos juntos relembrando suas peripécias
quando criança e adolescente.
Outros, porém, não conseguiram e se tornaram,
aos olhos indiferentes da comunidade e do poder público, apesar de nossa luta
cotidiana para lhes garantir os direitos assegurados na Constituição, “maconheiros”,
“bandidos”, “ladrãozinho safado” etc. Para a polícia, são os “elementos”,
“delinquentes”, “meliantes” etc.
Então, no dia em que vejo entrar na minha sala
de audiência, algemado, cabeça raspada e com uniforme do presídio, agora com 23
anos, um daqueles meninos que tinham 10 anos de idade quando aqui cheguei,
sinto um misto de tristeza, impotência, revolta, indignação e vontade de
chorar.
Esta, por fim, é a única coisa que me
entristece em ser Juiz da mesma comarca por muito tempo: constatar,
impotente e indignado, que “meninos” se tornam “bandidos” por
omissão de suas famílias (quando as tem), da comunidade e do poder público.
Gerivaldo Neiva *
* Juiz de Direito (BA), membro de Associação Juízes para a
Democracia (AJD) e do movimento Law Enforcement Against Pprohibition (Leap
Brasil)
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