“Eu não gosto da cidade, o ar me sufoca”, diz Valmir. Foto: Gabriela Vasconcellos
Eles são
filhos do campo. Começaram a lavrar a terra quando ainda não diferenciavam a
roça de seus brinquedos. Conhecimento antigo carregado por gerações, o trato da
lavoura fez parte dos primeiros passos dos jovens estudantes da Casa Familiar
Rural de Presidente Tancredo Neves, escola de ensino médio e técnico mantida há
dez anos pela Cooperativa de Produtores Rurais locais, a Coopatan, pela
Fundação Odebrecht e por empresas parceiras, no município do Baixo Sul da
Bahia.
“A vida de criança no campo é boa”, diz Valmir
Santos Miranda, 19 anos, a lembrar da infância em contato com a terra, das
brincadeiras. “Até abrir a cabeça para o que o mundo é mesmo”, conclui o moço
de fala pausada, quase didática, que sabe o que é vir de uma família de sete
irmãos e parcos recursos.
Com a
idade, vem a consciência da miséria, e a falta de perspectiva empurra muitos
jovens para a vida urbana. A cidade de Presidente Tancredo Neves é paradisíaca
em sua natureza, mas impiedosa com a maioria de seus 23 mil habitantes. A
pobreza na região de economia agrícola contrasta a natureza e serviços
desfrutados pelos turistas com o cotidiano duro da população, onde até 70% das
famílias de agricultores dependem do programa federal Bolsa Família.
Foi no
projeto de ensino de alternância da Casa Familiar, onde os alunos ficam uma
semana na escola e duas em casa, que jovens tancredenses encontraram os
primeiros matizes para esboçar uma nova realidade de enraizamento em suas
terras. Eles não querem ser empregados, nem ir para a cidade. Buscam nos
conhecimentos técnicos a estrutura que seus pais não tiveram para conseguir uma
vida digna no campo. É o sonho de ser uma classe média rural.
“Eu não
gosto da cidade, o ar me sufoca”, diz Valmir, sem saudades das poucas visitas à
capital Salvador. Trabalhador do campo desde os oito anos, hoje cursa o
primeiro ano do ensino médio com técnico em agropecuária na Casa Familiar. Nos
dias passados na escola, a rotina é apertada. As aulas começam às sete da manhã
e vão até às dez da noite, numa grade que integra as disciplinas comuns com os
ensinamentos de técnicas agrícolas. Há intervalos apenas para almoço e para uma
pausa no fim da tarde.
Uma horta
orgânica em forma de mandala, com um galinheiro ao centro, ocupa uma área na
entrada da propriedade da família de Valmir. A iniciativa, desenvolvida no
período de alternância, é incentivada pela Embrapa e pela Fundação Banco do
Brasil. “É tudo com adubo orgânico, não vai química nenhuma.” As hortaliças
fartas e as alfaces de verde vivo exibem o sucesso da empreitada que provou aos
mais antigos que o controle de pragas pode trazer melhores resultados sem os
fertilizantes químicos.
“Eu não
gosto da cidade, o ar me sufoca”, diz Valmir. Foto: Gabriela Vasconcellos
Para
aplicar o que aprendem na escola, muitas vezes é preciso “bater de testa com os
pais”, contam alguns alunos na gíria local. Diante da tradição carregada pela
família no trabalho da roça, os alunos pedem passagem para as novas técnicas.
Reservam para si uma parte da lavoura para usar o que aprenderam na escola e,
ao longo do tempo, comparam resultados com a área plantada pelos pais. “Não
adianta falar que o jeito que meu pai sempre fez é errado, é preciso mostrar na
prática o que dá maior rendimento”, diz o aluno Ednaldo, da turma de Valmir.
Essas
crianças amadurecidas cedo na lida têm o olhar duro, calejado. A capacitação
técnica dos 150 jovens já formados na casa familiar, e dos mais 100 em
formação, os tornou referência local. Um laboratório instalado na casa familiar
realiza análise de solo para agricultores da região, indicando o tratamento
adequado por 25 reais. Não raro os alunos são abordados por vizinhos para tirar
dúvidas sobre o manejo das lavouras. Quando não sabem a resposta, procuram a
orientação dos professores.
O
resultado do trabalho nas propriedades dos alunos também chama atenção da
população local. A aluna Maurícia, moradora de um assentamento do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) na região, desenvolveu, como Valmir, o sistema de
horta em mandala e hoje vende produtos para a comunidade. “As pessoas comentam
quando veem a gente passar com o uniforme. E pensam que não é só a zona urbana
que dá retorno financeiro. Aqui também”, diz a menina contente em ver seu mundo
pessoal valer a pena.
Convencer
os pais de que era bom ficar numa escola que permite passar duas semanas
seguidas em casa foi outra tarefa difícil. No caso de Andreza, colega de
Maurícia no assentamento do MST, os monitores precisaram ir até a sua casa para
explicar à família do que se tratava o inusitado projeto educacional. “Insisti
no que eu queria. Hoje meu avô diz que eu sou o orgulho da família”, conta a
menina com as botas sujas de terra.
Conseguir
uma vaga na casa familiar não é uma tarefa simples. A equipe de monitores, sete
engenheiros agrônomos com licenciatura, procuram um perfil certo de quem tem
habilidade com agricultura e família com terra disponível para as atividades.
No último processo seletivo, foram 323 inscritos para 38 vagas. Do total,
apenas 120 foram selecionados para fazer as provas, após visitas dos monitores
às casas. A avaliação escrita filtrou 60 dos candidatos para um período de três
dias de experiência, e ao fim, 38 foram escolhidos. “Buscamos a história da
pessoa, se ela tem o espírito de servir e viver em comunidade”, diz a monitora
Rita Cardoso.
Juscelino
Macedo, 30 anos, líder da Aliança Cooperativa Estratégica da Mandioca, que
reúne a Coopetan e a Casa Familiar Rural de Presidente Tancredo Neves, já sabia
o que era contestar as verdades tradicionais. Viu seu pai perder muito dinheiro
com a quebra das safras de mandioca de 1997/1998, que atingiu toda a região, e
defendeu a importância da criação de uma cooperativa para os produtores locais,
apesar de seu pai ver a iniciativa com desconfiança. Aos 18 anos, Juscelino já
era um cooperado. “Os produtores se uniram pela dor, para poder resolver os
seus problemas”, conta o rapaz atarefado com as demandas da entidade.
A
cooperativa foi além da mandioca. Cortou intermediários com o comércio e hoje
beneficia a matéria-prima numa fábrica de farinha e de farelo de folha,
construída com recursos do governo da Bahia. Os cooperados também começaram a
plantar frutas e, com verbas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES), construíram uma unidade de pré-beneficiamento dos produtos, que
permite estocá-los em área refrigerada.
A
expectativa é que a cooperativa incremente cada vez mais a produção na cidade e
alimente a Casa Familiar, que por sua vez receberá os filhos dos cooperados,
que serão os próximos a manter essa estrutura. O desenvolvimento, além de
econômico, passa pela reconstrução de valores como a modernidade, o progresso e
a qualidade de vida como parte da vida no campo e não mais como atributos
exclusivos das cidades. Valmir admite ter vida urbana por uns anos, porém, para
fazer a faculdade de agronomia. Mas garante que volta. “Não quero ser
assalariado, quero ser produtor.”
Por Samantha Maia
Carta Capital
*A
repórter viajou a convite da Fundação Odebrecht
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