[Proposta privilegia políticas públicas que assegurem acesso a bens e serviços essenciais]
[A dicotomia entres os objetivos ético e econômico é o que mais incomoda]
Um “Programa Áureo de Erradicação da Pobreza” foi proposto por Cristovam Buarque nas páginas da revista República. “Áureo” porque exigiria um esforço social semelhante ao da abolição da escravatura, tanto no compromisso ético, quanto na vontade política. Em vez de passar pelo crescimento econômico, sua estratégia para acabar com a pobreza em quinze anos se baseia em políticas públicas que assegurem o acesso de todos aos bens e serviços essenciais. Principalmente comida, educação, saúde, transporte e moradia. “Para erradicar a pobreza, o caminho é empregar a população diretamente na produção dos bens e serviços essenciais. Criar um produtivismo social que transforme os pobres desempregados em produtores do que o Brasil precisa para erradicar a pobreza de sua sociedade.”
O programa é composto de 10 incentivos sociais diretos e 4 indiretos para que respectivamente pobres e não-pobres produzam bens e serviços essenciais. Entre os diretos está o famoso Bolsa-Escola, mas também uma licença maternidade universal e ampliada, a construção de escolas, os assentamentos, ou o micro-crédito. Os indiretos prevêem a participação da universidade e a contratação de professores e servidores para o ensino básico e fundamental. Segundo as estimativas do autor, mesmo nos anos de gastos máximos, a necessidade de desembolso real não passaria de R$ 25 bilhões. O que equivale a uns 6% da receita prevista para o setor público brasileiro e a algo em torno de 2% da renda nacional. Além disso, para começar bastariam R$ 10 bilhões no primeiro ano, dos quais R$ 4 bilhões já estão sendo usados pelo Fundo de Combate à Pobreza.
Claro, o ex-governador do Distrito Federal não chega a descartar a necessidade de o Brasil manter seu esforço de crescimento econômico. Mas considera que são coisas inteiramente diversas. A erradicação da pobreza seria o maior objetivo ético da sociedade brasileira neste momento de sua história. Muito maior que o objetivo econômico de “construir sua riqueza”. E o cumprimento do objetivo ético só poderia ajudar crescimento econômico por meio de um “keynesianismo socialmente produtivo e financeiramente equilibrado”. Em vez de esperar que o crescimento liquide a pobreza, Cristovam Buarque quer virar o jogo: é a erradicação da pobreza que deve induzir ao crescimento econômico: “um crescimento pela base”.
A dicotomia entre os objetivos ético e econômico é o que mais incomoda. Não há dúvida de que economia e ética, como campos do conhecimento, se distanciaram gravemente, gerando uma das principais deficiências da teoria econômica contemporânea. Mas tal distanciamento não autoriza a suposição de que os objetivos éticos e econômicos de uma sociedade possam ser separados no tempo. Nada mais artificial do que imaginar que uma sociedade possa adiar seus anseios econômicos para se concentrar primeiro em imperativos éticos. Em todo caso, não foi o que ocorreu no Sri Lanka, na China pré-reforma, na Costa Rica e no Estado indiano do Kerala, as quatro experiências em que se verificou substancial redução da pobreza na ausência de significativo crescimento econômico.
Foi no livro Hunger and public action (Clarendon Press, Oxford, 1989) que Jean Drèze e Amartya Sen demonstraram que além de não ser condição suficiente, o crescimento econômico não é sequer condição necessária do êxito no combate à miséria. O crescimento não é condição suficiente porque só reduz o número de miseráveis se estiver fortemente orientado para o emprego e para a expansão de serviços sociais mais relevantes, como os de saúde, educação e proteção social. O crescimento também não é condição necessária porque a expansão do emprego e dos serviços sociais mais relevantes dele não dependeu nos quatro casos citados. E a viabilidade desse processo alternativo repousa no fato dos serviços sociais relevantes serem altamente intensivos em trabalho e, portanto, relativamente baratos nas situações de mais pobreza, onde os salários são baixos. Uma economia pobre tem menos dinheiro para despender em serviços de saúde e educação, mas também precisa gastar menos para fornecer os mesmos serviços. E o aumento da renda das populações mais desfavorecidas não lhes faculta o acesso aos bens públicos essenciais, como educação básica de qualidade, atendimento eficiente de saúde e moradia com água potável, coleta de lixo e esgoto. Por mais que aumente a renda dessas famílias elas dificilmente poderão ter acesso ao ensino pago, aderir a planos de saúde, ou pagar aluguel de domicílio decente.
Ocorre, todavia, que esse processo alternativo é menos vantajoso, pois com crescimento econômico é possível combater simultaneamente outras privações mais vinculadas aos baixos níveis de renda: comer bem, locomover-se facilmente, morar e vestir-se de forma adequada, etc. Por isso, o grande desafio é conseguir orientar o crescimento simultaneamente para o emprego e para a expansão dos serviços sociais essenciais, mantendo a alternativa aberta pelo Sri Lanka, China, Costa Rica e Kerala como uma espécie de plano “B”, e não como um plano “áureo”.
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José Eli da Veiga é professor titular da FEA-USP e secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS). www.fea.usp.br/professores/zeeli/
[A dicotomia entres os objetivos ético e econômico é o que mais incomoda]
Um “Programa Áureo de Erradicação da Pobreza” foi proposto por Cristovam Buarque nas páginas da revista República. “Áureo” porque exigiria um esforço social semelhante ao da abolição da escravatura, tanto no compromisso ético, quanto na vontade política. Em vez de passar pelo crescimento econômico, sua estratégia para acabar com a pobreza em quinze anos se baseia em políticas públicas que assegurem o acesso de todos aos bens e serviços essenciais. Principalmente comida, educação, saúde, transporte e moradia. “Para erradicar a pobreza, o caminho é empregar a população diretamente na produção dos bens e serviços essenciais. Criar um produtivismo social que transforme os pobres desempregados em produtores do que o Brasil precisa para erradicar a pobreza de sua sociedade.”
O programa é composto de 10 incentivos sociais diretos e 4 indiretos para que respectivamente pobres e não-pobres produzam bens e serviços essenciais. Entre os diretos está o famoso Bolsa-Escola, mas também uma licença maternidade universal e ampliada, a construção de escolas, os assentamentos, ou o micro-crédito. Os indiretos prevêem a participação da universidade e a contratação de professores e servidores para o ensino básico e fundamental. Segundo as estimativas do autor, mesmo nos anos de gastos máximos, a necessidade de desembolso real não passaria de R$ 25 bilhões. O que equivale a uns 6% da receita prevista para o setor público brasileiro e a algo em torno de 2% da renda nacional. Além disso, para começar bastariam R$ 10 bilhões no primeiro ano, dos quais R$ 4 bilhões já estão sendo usados pelo Fundo de Combate à Pobreza.
Claro, o ex-governador do Distrito Federal não chega a descartar a necessidade de o Brasil manter seu esforço de crescimento econômico. Mas considera que são coisas inteiramente diversas. A erradicação da pobreza seria o maior objetivo ético da sociedade brasileira neste momento de sua história. Muito maior que o objetivo econômico de “construir sua riqueza”. E o cumprimento do objetivo ético só poderia ajudar crescimento econômico por meio de um “keynesianismo socialmente produtivo e financeiramente equilibrado”. Em vez de esperar que o crescimento liquide a pobreza, Cristovam Buarque quer virar o jogo: é a erradicação da pobreza que deve induzir ao crescimento econômico: “um crescimento pela base”.
A dicotomia entre os objetivos ético e econômico é o que mais incomoda. Não há dúvida de que economia e ética, como campos do conhecimento, se distanciaram gravemente, gerando uma das principais deficiências da teoria econômica contemporânea. Mas tal distanciamento não autoriza a suposição de que os objetivos éticos e econômicos de uma sociedade possam ser separados no tempo. Nada mais artificial do que imaginar que uma sociedade possa adiar seus anseios econômicos para se concentrar primeiro em imperativos éticos. Em todo caso, não foi o que ocorreu no Sri Lanka, na China pré-reforma, na Costa Rica e no Estado indiano do Kerala, as quatro experiências em que se verificou substancial redução da pobreza na ausência de significativo crescimento econômico.
Foi no livro Hunger and public action (Clarendon Press, Oxford, 1989) que Jean Drèze e Amartya Sen demonstraram que além de não ser condição suficiente, o crescimento econômico não é sequer condição necessária do êxito no combate à miséria. O crescimento não é condição suficiente porque só reduz o número de miseráveis se estiver fortemente orientado para o emprego e para a expansão de serviços sociais mais relevantes, como os de saúde, educação e proteção social. O crescimento também não é condição necessária porque a expansão do emprego e dos serviços sociais mais relevantes dele não dependeu nos quatro casos citados. E a viabilidade desse processo alternativo repousa no fato dos serviços sociais relevantes serem altamente intensivos em trabalho e, portanto, relativamente baratos nas situações de mais pobreza, onde os salários são baixos. Uma economia pobre tem menos dinheiro para despender em serviços de saúde e educação, mas também precisa gastar menos para fornecer os mesmos serviços. E o aumento da renda das populações mais desfavorecidas não lhes faculta o acesso aos bens públicos essenciais, como educação básica de qualidade, atendimento eficiente de saúde e moradia com água potável, coleta de lixo e esgoto. Por mais que aumente a renda dessas famílias elas dificilmente poderão ter acesso ao ensino pago, aderir a planos de saúde, ou pagar aluguel de domicílio decente.
Ocorre, todavia, que esse processo alternativo é menos vantajoso, pois com crescimento econômico é possível combater simultaneamente outras privações mais vinculadas aos baixos níveis de renda: comer bem, locomover-se facilmente, morar e vestir-se de forma adequada, etc. Por isso, o grande desafio é conseguir orientar o crescimento simultaneamente para o emprego e para a expansão dos serviços sociais essenciais, mantendo a alternativa aberta pelo Sri Lanka, China, Costa Rica e Kerala como uma espécie de plano “B”, e não como um plano “áureo”.
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José Eli da Veiga é professor titular da FEA-USP e secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS). www.fea.usp.br/professores/zeeli/
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